Centelha é uma obra que, apesar de não esconder seu objetivo de retratar a frustração do artista, surpreende positivamente com a densidade de seu discurso. É sobre o escape em relação à frustração do bloqueio criativo, poeticamente expressado graças à aposta na estética visual e direção autoconsciente. Eu tive uma experiência extremamente prazerosa com o filme devido ao tema altamente identificável e como os quesitos técnicos servem perfeitamente ao propósito da narrativa.
De início, somos introduzidos ao universo do protagonista, um artista entravado nas ideias. O artista, desesperadamente procurando uma forma de se expressar nesse caos urbano, busca refúgio na música e imaginação. Apenas esse vislumbre cria uma força na narrativa pois a identificação é de caráter universal. A câmera percorre o caminho da cidade até seu local e, quando chega no protagonista, o observa e entra em sua pele através de closes invasivos em sua face. Qualquer pessoa no qual o ofício é necessário um mínimo de apelo criativo se reconhece no protagonista e em seu “empacamento” na criação; ainda mais no cenário urbano em que ele se localiza, com os carros transitando no exterior e os filtros de cigarros já tragados na mesa.
Então, cansado de queimar neurônio sem criar fogo, nosso herói se cansa e vai para o local em que ele pode se refugiar: a música. Ele coloca seus fones de ouvido e se prepara a viagem interdimensional cujo objetivo é um local calmo, seguro e agradável, digno da estética pleasure lo-fi que contaminou o universo adolescente. Essa estética que servia como peça para fazer o autor parecer descolado, mas, sempre que era usado apenas para esse propósito, causava um sentimento vergonhoso no expectador devido a falta de carinho ao tratar dos outros elementos como a qualidade técnica e a mensagem. Preocupante perceber que esse anseio adolescente de sempre querer ser melhor e mais descolado que seu colega impregnou até as menores das obras, vide TikTok e Reels. Felizmente Centelha soube usar do instrumento audiovisual em um contexto adequado que causa a sensação de que não funcionaria sem ele, ou seja, o faz necessário.
Dentro desse novo prisma, percebemos a tentativa de moldar o paraíso mental através da fotografia que, harmonizada com a trilha sonora, transmite para o público a mesma serena sensação do protagonista, mesmo com as contradições e inquietação da narrativa em dar particularidade a esse mundo. Dentro da dimensão onírica, há uma grande demonstração que esse lugar é o lugar dele, lugar que ele mentalizou de seu jeito e só há propósito em agradá-lo. O ambiente em que ele pode ser ele mesmo sem medo de ser galhofa ou desagradar alguém. Se olharmos por essa perspectiva, conseguimos encontrar propósito na superexposição da fotografia em momentos oportunos, cortes rápidos e ângulos nada favoráveis à construção do universo imaginário que o filme deixa claro tentar criar com a paz, calma, e sintonia com a natureza; mas também não podemos descartar a possibilidade dessas escolhas refletirem o que a produção acredita ser esteticamente agradável, como mergulhar a cabeça em um balde de água fria para tirar o sono ao invés de dormir ou tomar uma xícara de café. De qualquer forma, esses pequenos detalhes parecem fora de sincronia com o filme em si, valendo o questionamento se tais detalhes são coerentes com o discurso.
Em meio a essa sequência de sonho, eu destaco um plano: na beleza do irreal, o personagem sentado em meio a dois coqueiros, como se estivesse aprisionado. Esse plano de poucos segundos graciosamente me forçou a pensar se seria possível que um lugar tão fantástico tenha a possibilidade de ser uma forma de controle, e instantaneamente eu cheguei na conclusão que sim. Ao realizar que nada do que presencio é localizado na realidade e que o protagonista propositadamente se inseriu nesse mundo como fuga de seu mundo pouco inspirador, senti uma leve angústia por acreditar que o único motivo para ele sair da “matrix” é conseguir uma inspiração para superar o bloqueio criativo e continuar sua obra. Por isso, o enorme alívio quando ele sai desse estado de transe e olha para o expectador já na realidade. Ele sabe que nos apaixonamos pela ilusão assim como ele e, pela identificação, ficamos aliviados por ele ter conseguido a centelha que acende o fogo da criatividade.
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