No interior de um espaço doméstico, a ação cotidiana de um homem é interrompida com o surgimento de um pequeno peixe vindo da água de sua torneira, mas que, sem sinal de hesitação por parte do personagem humano, acaba sendo ingerido. O ato provoca um processo de transformação no protagonista, forçando-o ao mesmo destino que o ser consumido anteriormente. Em sua curta duração, a animação História de Pescador desenvolve uma narrativa com elementos fantasiosos que explora um significado subjetivo para sua trama.
A partir de desenhos digitais, o curta-metragem, realizado por Amanda Veloso, utiliza da técnica quadro a quadro de forma a dialogar com o desenvolvimento dos acontecimentos em sua história. A escolha é responsável por representar com êxito o ritmo calmo referente à atividade cotidiana observada na obra, acentuado também pelo bocejo do personagem principal, geralmente utilizado para representar cansaço e um consequente estado passivo de ação. Entretanto, certos momentos recebem mais destaque e um maior número de quadros por segundo, como o primeiro aparecimento do peixe, a revelação do reflexo no espelho do banheiro e, logo depois, a sucção do protagonista por um grande tubo revelado de repente. Essa variação do uso da técnica colabora para a trama da animação ao estabelecer visualmente o maior impacto almejado por planos específicos.
Simultaneamente, a obra busca instigar o espectador através do uso da excentricidade presente na combinação entre seus aspectos técnicos e narrativos. O estilo de arte propositalmente distante do realismo utiliza de escolhas visuais que, em conjunto aos sons da obra, buscam gerar um sentimento de estranheza e desconforto ao público, além de sugestões de narrativa para a trama. O rosto sem expressões e com escuras olheiras do personagem principal é representado em trechos ausentes de trilha sonora, enquanto um som agudo acompanha planos em que sua forma metade peixe é destaque, estes são elementos do curta que traçam paralelos com o gênero terror, gerando momentos de apreensão a partir de acontecimentos não-naturais.
Ademais, como dito anteriormente, mesmo não possuindo falas, a atmosfera criada em História de Pescador é fortalecida através de seus efeitos sonoros. O curta destaca sons que não são comumente ouvidos em “alto e bom som”, seja em outras obras ou na própria realidade, e, como resultado, acaba por desenvolver uma experiência sensorial semelhante a vídeos e áudios ASMR (Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano, traduzido do inglês Autonomous Sensory Meridian Response) passíveis de gerar diferentes sensações nos espectadores da obra, assim como a interpretação acerca do significado por trás de sua mensagem.
Por fim, a partir do título da obra de Amanda Veloso e a relação com seu conteúdo, é evidente a construção de uma metáfora ao longo do roteiro de História de Pescador. Subentende-se, a partir de seu final, o recomeço do ciclo entre humanos e peixes, ou predadores e presas, uma questão já muito trabalhada em outras histórias, fictícias ou não. Então, assim como é possível traçar paralelos com a famosa frase “um dia você é a caça e no outro o caçador” e remetê-la ao predatismo em uma cadeia alimentar natural ou em um sistema de classes sociais de uma sociedade capitalista, um diferente decodificador da mensagem é capaz de utilizar de mínimos detalhes, como as olheiras do protagonista, para criar o mais complexo sentido para ela. Ou seja, a subjetividade da narrativa cria uma gama de possibilidades para seus significados, divergentes entre diferentes espectadores, mas que suportam ricos debates acerca da obra.
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