Acompanhamos a história de Dani, uma travesti que trabalha em um salão de beleza. Ela vive um caso com Roberto, um homem casado que se incomoda quando sua amante revela que a cirurgia de redesignação sexual está próxima. Por que Dani se sujeita a esse tipo de relação? – é o que pensamos de início, mas percebemos que talvez nem tudo seja preto no branco. Talvez esse seja o único tipo de relacionamento que ela conheça, o chamado “dedo podre” segundo sua amiga que parece atribuir o fato a um contexto social maior.
Situações assim são comuns não apenas para a protagonista, sugere a mesma amiga. É uma realidade para muitas travestis, simplesmente por conta que uma sociedade preconceituosa que ao mesmo tempo que as marginaliza, também as trata como objetos sexuais.
E essa é apenas uma das camadas dessa história, representada por homens como Roberto que, por trás das demonstrações de carinho, parece esconder um preconceito contra a própria sexualidade. Isso vem à tona de maneira mais explícita quando ele repreende Dani pela cirurgia, deixando transparecer sua falta de interesse nela após a operação. Nesse momento é revelando também que o homem não suporta ser chamado de “bixa”, mesmo quando a palavra é dita de forma carinhosa pela protagonista, remetendo ao título do curta-metragem Não me chame assim.
Não tendo como prosseguir com o relacionamento, a fachada de amor e carinho sustentada por Roberto também é dissolvida, revelando um clima tenso onde a violência paira pelo ar. Assim, outro aspecto social é trazido à tona: não seria preciso falar que o Brasil é um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA+, todo mundo sabe disso. Não seria preciso se isso não fosse uma realidade que persiste.
Talvez a grande sacada do filme seja mostrar a violência velada, pois assim como na vida, as pessoas não dizem com todas as letras a suas reais intenções, mas suas atitudes podem revelar (ou não) do que são capazes. Isso os atores conseguiram expressar muito bem, e seus personagens têm atitudes tomadas pelas emoções que vão da explosão da raiva ao medo genuíno. Para exemplificar, mesmo quando não acontece violência física, o clima formado pela trama nos faz acreditar que o pior ainda pode acontecer.
O filme é claro em sua mensagem, e sua narrativa cotidiana tem um andamento fluído, de modo que a violência e os aspectos amargos da história são introduzidos de forma espontânea, escancarando uma história mais real do que muitos pensam.
Uma escolha da direção que muito me agrada é não focar nos fatores externos como os preconceitos e tabus sociais. Eles estão lá de fato, mas a obra escolhe destacar a vida da protagonista e suas dores. Dani parece ser apenas uma pessoa buscando seu final feliz, uma profissão, um relacionamento verdadeiramente amoroso e saudável, mas sabe que para ela alcançar essa felicidade há obstáculos a mais do que as outras pessoas, e não é difícil torcer por ela. Nisso dou todo crédito pela atuação da atriz, que consegue transmitir emoções apenas com o olhar.
Para mim, o desfecho se dá com sentimentos conflitantes, o medo pela protagonista e a esperança quanto ela se livra de uma relação tóxica. Ainda assim, fica uma atmosfera de receio, em que a narrativa é enfatizada pela fotografia que traz a escuridão nos momentos mais tensos e a luz e cores quentes em ambientes mais confortáveis para a protagonista.
O filme se propõe muito mais a sentir as emoções da protagonista, do que questionar a sociedade, ainda que possa fazer de forma indireta. E optando por tal escolha de forma consciente, torna a experiência de assisti-lo mais envolvente e, por que não dizer, mais reflexiva. É uma forma de gerar empatia, pois enquanto ‘não é comigo’ as estatísticas vão crescendo. Se colocar no lugar é Dani é entender um pouquinho mais do contexto de travestis e transsexuais, contexto que ao mesmo tempo é multifacetado e ligado por similaridades. O filme se torna muito bom quando consegue passar tudo isso pela emoção através de aspectos técnicos, como já citei, e estes têm sucesso em gerar empatia ao construírem uma história bem contada.
E foi essa combinação de narrativa e empatia que tocou. Se por um lado fiquei imersa na narrativa, por outro acabei absorvendo parte da angústia de Dani ao ter que lidar com o simples ato de sair na rua ou esquecer as portas abertas. Senti que poderia ser alguém que eu conheço, poderia ser uma amiga ou conhecida. E isso me fez pensar em quantas Danis tem por aí de cuja vida não temos a menor ideia de como conseguem lidar com isso tudo. Trouxe o olhar do macro, do social, para humano, para a pessoa que está do seu lado.
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