Justo pela correria da semana e tendo que escrever pro festival, tive que ver o filme Moscas Mortas, de Carolina Cardoso, em um dia em que estava mal do estômago. O curta-metragem acompanha a noite de uma família que chega de uma viagem e encontra sua casa sem energia, resultando no apodrecimento dos alimentos, e esse problema faz com que os seus membros voltem a enfrentar antigas desconfianças e acusações, estourando em uma discussão fervorosa. Mas, embora eu estivesse sob condições propícias para experienciar o máximo de nojo possível com as decisões estéticas da obra, o que me deu enjoo foi mesmo a tentativa de desenvolvimento dramático dessa família. Este não parece ter um ponto que se ligue às dimensões do filme, além dele ser covarde em continuar as ideias previamente estabelecidas e assim não parando para pensar em uma linguagem adequada.
Os sons que invadem o campo fílmico parecem ter a intenção de servir para a diegese, na qual deveria refletir o incômodo daquele círculo familiar e o estresse que eles geram nos envolvidos, e também gerar essa emoção no público. Pois mediante a momentos de extremo estresse, um som cotidiano como de uma mosca, ou de vizinhos fazendo amor, me deixaria ainda mais estressado. Eu particularmente odeio o barulho que as moscas fazem quando estou tentando me concentrar pra dormir. Aí o filme já perde uma maneira de poder dialogar comigo, pra me fazer crer no sentimento dos personagens e entender o estresse que ali se passa. Mas o meu problema com o som do filme é que ele acaba se manifestando de maneira não diegética, pois não parece interferir naquele mundo ou na emoção das personagens, a não ser por diálogos pontuais, como no momento em que o irmão comenta sobre os vizinhos estarem fazendo muito barulho na cama. Para mim de nada serve esse diálogo, é uma colocação jogada pelo filme pra não dizer nada e não leva a nada no final. Talvez seja só uma influência tosca de Som ao Redor de Kleber Mendonça – aliás, esse filme me parece beber muito da fonte do diretor pernambucano, pelo que ele se propõe a fazer com os personagens, usar de um cotidiano e usar o espaço para influenciar as emoções e sensações dos personagens. Mas, diferente de Aquarius e Som ao Redor, o curta não se compromete em tornar as sensações dos personagens em relação ao ambiente muito críveis. A dinâmica do espaço e das sensações que quer criar através dos odores e texturas não me parecem nem minimamente apelativas, e a impressão é de que o filme nem se esforça em me fazer entrar no ambiente dele e sentir que aquilo ali pode tanto me afetar, quanto os personagens. O uso da linguagem audiovisual é pobre e não convence muito ao passar de seus dois minutos.
A sensação que eu tenho é de que a trilha de som está dentro da minha minha cabeça, e gostaria de poder desligar ou baixar o volume para me concentrar no filme em questão. O que era na intenção de agregar à tensão que se cria durante o filme, acaba parecendo uma dimensão descolada da obra fílmica como todo. Para um filme que tem a pretensão de usar da imagem de coisas em decomposição (comidas podres, larvas e fungos), a fotografia me parece muito limpa. Além de poucos planos detalhes que mostram o estado das comidas da geladeira, o filme parece ter medo de abraçar a podridão e o terror da decomposição alimentícia. Passando de seus dois minutos e meio, o filme recua a um lugar de esconder o que tinha inicialmente estabelecido como identidade visual, e tenta esboçar através do som de moscas o quão degradado está o ambiente, o que não funciona na mise-en-scène. Não parece estar encaixado no mesmo universo do filme. E isso não seria um problema se fosse uma escolha formal a de não mostrar visualmente o estado de decomposição dos alimentos, apenas por reações do personagem, que é o que acontece brevemente quando o irmão abre a geladeira e sente o cheiro podre, junto à poça de água que escorre do utensílio. Pra mim isso passa a não funcionar a partir do momento em que abandona o uso da imaginação do público para esboçar o que pode estar ali, e mostra explicitamente em que estado os alimentos se encontram, e se isso também fosse pro caminho de um food horror, não seria um problema. Mas a questão é que o filme fica indeciso, no meio dessas duas coisas, e não escolhe uma única abordagem, fazendo as duas de maneira meia boca, ensaiando as duas e não executando nenhuma.
Falando de um aspecto mais técnico, nem mesmo o uso de uma câmera de qualidade consegue salvar o filme, já que tem cenas em que as expressões dos personagens discutindo deveriam estar minimamente iluminadas. E não se engane ao pensar que isso integra a linguagem do filme funcionalmente (se é que a linguagem marca tanta presença aqui). A iluminação não valoriza a atuação dos que estão em cena, ao invés de ir pro simples e usar planos fechados em plano contra plano, uma penumbra cobre o rosto dos personagens e o quadro exibe a casa também escura, me distanciando mais ainda daqueles personagens, como se o filme escondesse ele nas sombras e não quisesse que visse a fragilidade deles demonstrada pelo rosto. Eu esperava que na explosão de euforia, eu pudesse ver a raiva dos membros dessa família, mas no momento em que eles se mostram e expõem o que sentem um em relação ao outro, o filme ainda esconde eles em penumbras. Mais uma vez a direção peca em não pensar no que a linguagem em suas decisões criativas pode significar pro filme como um todo. E se a intenção aqui foi construir uma relação mais intimista, é muito mal pensada. Partindo da premissa de que a queda da energia e o transtorno servem para o estopim de uma discussão que se resguarda há muito tempo, o curta não consegue nem transmitir a ideia de que o ambiente está carregado pela má convivência, nem de que a gota da água está prestes a cair. A encenação me parece abrupta em vários momentos, como na cena em que o cunhado confronta o irmão. Os personagens chegam a um lugar de estresse muito de repente, o que não me faz comprar essa discussão e aceitar que ela leva alguém a ir embora. Eu não estou convencido de que o personagem do irmão esteja disposto a sair daquela casa por conta de uma discussão tão boba, sendo que o filme apresenta ele como um personagem dependente de sua irmã e de seu cunhado. Me parece abrupto que de um momento ao outro, sem uma construção ou desenvolvimento, o personagem do irmão se desprenda da família e crie independência, sendo que durante o filme tudo aponta para uma direção oposta à essa.
Algumas escolhas de decupagem não dão valor ao que o filme cria no início, construindo a casa como um agente do caos e o catalisador dessas intrigas que estavam há tanto tempo debaixo do pano. A partir do momento em que se começa a discutir quem vai limpar a geladeira, o filme joga pro lado e esquece de sua regra inicial da criação de mundo, de que a casa é um personagem vivo ali. O ambiente se torna passível de qualquer outra ação a partir dessa cena, me parece que a casa passa agora a ser uma locação inanimada e não ter mais influência em qualquer dos personagens.
O filme é descomprometido com ele mesmo. Até dá pra dizer que é um filme com déficit de atenção e ansiedade, pois em um momento se interessa por algo, mas logo outro algo rouba sua atenção, e que também é deixado de lado quando se propõe encabeçar algum outro conceito ou usar outro artifício. E eu não sei se é medo, mas o curta não abraça as ideias que estabelece, parece que o filme é apático, em não se amar, não gostar do que estar fazendo, então fica mudando em vários momentos, parecendo que são alguns rascunhos do mesmo projeto, colados todos juntos. No final é só desconcertante de ver. As atitudes dos personagens não tem nexo e a câmera está como inimiga da estória, pois as sombras em excesso e os enquadramentos muito abertos não valorizam os personagens e seus sentimentos, já que essa pretendia ser a principal questão do filme, pra poder chegar ao ponto do estopim da briga. O que eu assisti foi só um filme porco, onde o som e o vídeo nem parecem estar de acordo, como se fossem duas mídias misturadas ao acaso. E falando em acaso, é o que o curta espera que aconteça pra que eu compre a ideia do filme.
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