O documentário Caderno de receitas tem uma proposta bem clara: demonstrar como o ato de cozinhar está relacionado com a vida destas três mulheres e nos propõe a pensar, para além das protagonistas, como o fazer comida ou o comer tem impacto dentro de nosso comportamento, situação financeira e humor. A comida é apresentada como um fator importante em nossa vida não só por questões biológicas, mas sim por causa do seu poder de transformar momentos comuns em situações especiais, de conectar as famílias em volta de uma mesa onde podem confraternizar e de criar laços emocionais simplesmente com uma forma, massa e alguns hamburgueres. O pensamento vai mais longe quando imaginamos que a comida está diretamente ligada ao poder aquisitivo de uma pessoa ou grupo, ou seja, indivíduos com baixa renda normalmente praticam menos refeições diariamente e não têm acesso a possibilidade de experimentar novos sabores, alimentos exóticos, etc. Além disso, quando familiares com menor capital usufruem de alguma refeição que está fora de seu padrão e que lhes agrada, isto se torna um momento especial para eles, uma celebração que será lembrada com saudade por certo tempo. O filme nos leva a pensar tudo isso por meio da exposição da história de três mulheres que se relacionaram de maneira diferente com a comida, mas que foram colocadas a pensar o porque tal ação tão comum na vida de muitos, é extremamente simbólica para cada uma delas.
As memorias contadas a partir da voz off são acompanhadas por vídeos, imagens ou animações que buscam exemplificar e situar as falas das personagens. Com o uso das imagens da família de cada uma, a obra consegue demonstrar a afetividade descrita a partir da comida relacionando com o teor familiar das fotos. A técnica de animação em stop motion é usada várias vezes se entrelaçando com as explanações, permitindo a exploração das falas das personagens para criar representações visuais, aproveitando do poder lúdico do mundo animado. Constrói-se uma narrativa começando do inicio da vida das mulheres, pois elas discorrem sobre sua infância e passado. Durante o processo cada uma relembra de uma comida especifica que é importante para si e por fim realizam o pudim, a bala de coco e a torta de hamburguer. Deste modo, o filme foi construído como uma receita, seguindo os passos, acompanhando cada processo, cada situação de vida, cada aprendizado, para chegar no resultado final, em algo que possa nos alimentar: visualmente e intelectualmente.
Para muitos a comida é ligada a felicidade, ao prazer que se tem em estar saciado ou ainda em sentir sensações únicas. A comida, segundo uma das participantes, “alimenta o corpo e nutre a alma”. Como uma forma de se desligar dos problemas cotidianos, a comida surge para nos libertar, pelo menos por um breve momento, dos sufocos e apertos. Quando uma família se reúne em volta de uma mesa para se servir, o que importa é o que está acontecendo ali e nada fora disso. Assim, a comida também é usufruída como fonte de cura para problemas biológicos, mas além disso também provem energia mental para enfrentar os desafios e as participantes demonstram isso pelas suas lembranças e histórias de vida.
O filme coloca em evidencia um pensamento sobre uma ação que está presente na vida de todo ser humano, mas que mantém uma relação particular com cada indivíduo – para muitos pode ser apenas uma obrigação nutritiva, para outros um momento de relaxamento e um tempo de celebração para alguns. Uma visão afetuosa é mostrada por meio destas três personalidades em relação com a comida e seu potencial afetivo dentro de suas vidas. Isso nos faz entender como um ato tão simples pode ser analisado de maneira diferente dentro de nossas experiências, neste caso de um modo carinhoso. É possível pensar, a partir disso, como ter ingerido ou não um alimento em um dia especifico pode ter influenciado nossas ações, comportamento e pensamento, e assim mudado certo aspecto de nossa vida, mostrando como se pode enxergar nuances nas diversas situações que nos cercam cotidianamente.
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