“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. Não existe melhor frase para descrever o fenômeno que acontece no Brasil de 4 em 4 anos, quando temos a sequência de copa do mundo e eleições federais. Acredito que desde que me conheço por ser humano brasileiro, consigo me lembrar da relação desses eventos. Porém, é impossível não explicitar duas ocasiões específicas nas quais as relações políticas se fundiram ao futebol de maneira impressionante: a copa de 2014 e a copa de 2022, que são retratadas no curta-metragem No meio de campo.
É possível notar uma conexão clara entre as duas ocasiões, copa e eleições. Muitos dizem que o fenômeno bolsonarista teve origem em 2014, com a eleição de Dilma Rousseff e, em sequência, com as manifestações do movimento Vem Pra Rua. Nessa ocasião, existia uma tensão política no ar durante toda a Copa do Mundo, em razão de um claro descontentamento de boa parte do povo com o governo da época. Um fato que atrelava essa insatisfação política da população com a Copa é que o torneio de 2014 estava sendo disputado em território brasileiro. Impossível não lembrar de vários protestos que aconteceram durante a competição, como as vezes em que a presidenta foi vaiada antes dos jogos. Traçando um paralelo, pode-se dizer que a copa de 2014 marca o início de uma grande ruptura entre o povo brasileiro, enquanto a de 2022 marca o ápice desse conflito com os atos terroristas de 8 de janeiro.
O filme explora muito bem a temática desses paralelos entre o cenário político brasileiro e a paixão de seu povo pelo futebol, utilizando de recursos da montagem para expor com clareza suas ideias; nada precisa ser especificamente dito, pois está sendo mostrado. Um desses recursos é a utilização de imagens relacionadas a comícios políticos da época com a narração de futebol ao fundo, nos fazendo relacionar os comportamentos grupais presentes em ocasiões políticas com a relação quase como sagrada do povo com o futebol. Um questionamento que me surgiu enquanto assisto o documentário é: qual a verdadeira representação do espírito brasileiro? Seria da união proporcionada pelos fenômenos culturais, ou a gigantesca cisão presente em nossa atual sociedade, explicitada por desavenças políticas?
É possível notar essa cisão em diversos países e culturas diferentes; as crises cíclicas do capitalismo necessitam de uma divisão de classes mais intensa para manter o funcionamento de seu sistema. Sinto que no Brasil essa divisão sempre existiu de forma velada e vimos, desde 2013, esses véus sendo derrubados com cada vez mais frequência.
A escolha de figuras representativas é algo de praxe em qualquer movimento social ou cultural, as pessoas gostam de ver sua personalidade, gostos e opiniões representadas nos grandes veículos de mídia. É nesse momento de escolha de representações que acredito enxergar uma maior aproximação do futebol da seleção com a situação política do momento. Por exemplo, em figuras como o grande craque da seleção brasileira, Neymar Junior, apoiando a reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2022, mesmo após toda a calamidade da pandemia. Após esse momento, a forma como a população passou a encarar a seleção brasileira mudou completamente; os campos de futebol se tornaram novamente um lugar de disputa política. Os eleitores do governo Bolsonaro apoiavam como nunca a seleção, enquanto a oposição buscava, por meio dos resultados dos jogos, maneiras de criticar Neymar e aqueles vários na seleção que compartilhavam de seus pensamentos políticos. Esse fenômeno culminou na tentativa, por parte do público da oposição a Bolsonaro, de atribuir um lado político, adverso ao de Neymar, para o jogador Richarlyson, queridinho do público durante a Copa de 22. Essa tentativa de idealização em cima dos jogadores criou um clima muito complicado de tensão durante a esperada união do país durante a copa do mundo.
Mais a frente no documentário, chegamos ao clímax tanto da obra, quanto do desdobramento político que teve seu início em 2013: a invasão do congresso nacional de Brasília em 8 de janeiro de 2023. Novamente, o documentário faz um perspicaz paralelo entre os ataques terroristas do dia com comuns desentendimentos que ocorrem após diversas partidas de futebol. Dessa forma, exacerba mais ainda os paralelos de nossa política partidária com nossa paixão pelo futebol. Uma das coisas que mais me fascina por esse evento, e que também é explicitado pelo documentário, é a obliviedade de diversos participantes dos atos para com as consequências e a seriedade do que estava sendo cometido naquele momento, como se os atos terroristas de destruição de um dos símbolos da democracia brasileira tivesse a mesma seriedade de uma mera briga após um jogo de futebol.
O momento que mais me marcou no documentário foi quando a música e narração são interrompidas ao vermos um homem quebrando a câmera de segurança do Palácio do Planalto. Nesse momento, o curta faz mais um uso brilhante de um conceito cinematográfico: o da montagem intelectual de Eisenstein, ao mostrar diversos trabalhadores tendo que limpar toda a sujeira que foi causada por pessoas de sua mesma classe. O que eu senti que o curta tenta nos mostrar é como essa união nacional, presente na copa do mundo, não deixa de existir após o término da mesma. Pois apesar da extrema polarização mostrada para o país inteiro naquele fatídico 8 de janeiro, a maioria dos envolvidos naquele atentado não deixam de pertencer à mesma classe dos faxineiros que arrumaram toda a bagunça, dos torcedores nos bares e dos manifestantes contrários pelas ruas. No final do dia todos os envolvidos nesta dicotomia são trabalhadores.
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