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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

Foto do escritorHeloisa Montai

O que as palavras não dizem

Sendo curadora do Festival no ano passado, acabei desenvolvendo uma certa resistência a curtas que se pautam muito por monólogos ou diálogos rebuscados e poéticos. Isso porque, por vezes, a atitude para mim reflete mais uma preguiça dos autores de traduzir em imagens seus discursos do que um verdadeiro traço estilístico que o filme demanda. Não que tal característica seja totalmente culpa dos autores, visto que estes são e possuem uma equipe de, em sua maioria, universitários. É natural que seus filmes sejam suas primeiras experimentações e por isso se utilizem da linguagem hegemônica, que privilegia culturalmente o roteiro. Falo isso também por uma perspectiva de recém produtora, que caiu e cairá de novo nesses vícios de linguagem, que nos são empurrados goela abaixo, por um lado pela academia, por outro, pelo mercado.

Faço essa imensa contextualização para dizer que, em seus primeiros minutos, julguei precipitadamente Concha de Água Doce como um desses filmes que cai sobre tal erro de forma ingênua. O som inicial de um corpo d’água, que precede o surgimento da imagem em tela, é um mau presságio de uma voz melancólica em off recitando uma prosa poética existencialista (não me leve a mal, água é uma das metáforas visuais mais passadas no cinema e eu me reservo o direito de estar cansada dela). Felizmente, o que se sucede é apenas a imagem de uma criança emergindo da água do rio e boiando serena em um plano fixo que se alonga de forma calma, antecipando uma sequência deleitosa. Na cena em que passado e presente são ligados por uma montagem paralela, uma decupagem e direção meticulosas se deixam transparecer nas relações rítmicas e visuais de cada plano. Essas que, por sua vez, me fizeram alternar entre calmaria e tensão sem que nenhuma emoção ganhasse no final, mas se fundisse. Como se me dissesse que havia serenidade mesmo no nervosismo de Ariel prestes a rever a irmã após muito tempo, e hesitação na volta dele criança ao rio após o encontro com a concha. A mistura de sentimentos também traz à tona a pergunta que guiará o plot: por que Ariel estaria nervoso naquele dia no rio? O que aquele encontro simbolizou?

Também faço questão de citar a relação entre os planos de Ariel criança com a concha próxima ao ouvido e do rapaz, quando mais velho, ao chegar à cidade. O direcionamento do olhar dos atores e a perspectiva de seus corpos transformam montagem paralela em plano e contraplano, o passado e o presente são colocados frente a frente nessa tentativa de Ariel dar a sua criança interior, as respostas que o olhar perdido e questionador dela pedem.

Essas preocupações transparecem a vontade em experimentar dos autores, mesmo dentro de suas limitações narrativas. É quando largam um pouco dela para se apoiar sobre diálogos ambíguos e metafóricos, com certo tom de poesia contemporânea que converge com textos como os dos cruéis demais para serem lidos rapidamente, que o filme dá um pequeno tropeço. Fico feliz que esse uso seja moderado e até se adeque para ilustrar algumas situações, como a comunicação ruidosa dos irmãos, não por uma distância emocional entre ambos, já que essa parece estar mais forte, mas por serem indivíduos com demandas agora muito diferentes. Ainda, o monólogo final de Ariel me soa redundante e retira a força sensível que as imagens possuiriam sozinhas, fazendo o filme cair sobre a tentativa de esmiuçar com palavras para o espectador algo que poderia ser visto.

Dito isso, o que mais me emociona é a retórica de Ana: “Você não vai voltar pra casa comigo, né?”. A entrega da concha à irmã como resposta, aquela mesma encontrada quando eram crianças e tão iguais, é o simbolismo de que seu afeto continua o mesmo, embora seu lugar seja diferente. A concha entrega também o subtexto. A descoberta dela é como a da identidade de gênero de Ariel, intermediada pela irmã. Fato que o filme reitera, de novo, de forma desnecessária, pelo texto final – “é pelo seu olho que eu me vejo”. Ariel é como aquela concha, pois sua descoberta como transexual é sua descoberta de si mesmo, atípico ao lugar em que se encontra. E embora não pertença a ele, ainda acha motivos para retornar, como a concha que é arrastada do mar por alguma correnteza incomum até o rio em que as irmãs se banhavam naquele dia. Ana é a correnteza e a conexão dos irmãos é o que liga Ariel da capital oceânica ao litoral ribeirinho. Estando com a concha, Ana sempre terá Ariel.

O jovem retorna ao rio como quem volta para casa. Em suas roupas neutras, ele se funde à paisagem e encerra uma obra que poderia se tornar como tantas outras, fadadas a ter o valor limitado ao subtexto. Apesar de em breves deslizes o filme pender para esse resultado, em cenas que ele duvida da força de suas próprias imagens, essas ainda se provam soberanas. Embora os diálogos tentem, inutilmente, traduzir, é nas imagens que encontramos a dubiedade de sentimentos que interpola a relação das irmãs e a memória de Ariel da infância; É nelas que reside a força do filme.

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