Eu acredito que a forma como um documentário argumenta sobre a relevância do que está sendo transmitido é um dos fatores essenciais para o sucesso da obra, pois uma extensa pesquisa é necessária para que a realidade seja retratada e isso é demonstrado na forma que a obra expressa sobre o tema. Dito isso, é um fantástico assistir uma obra que transmite com exatidão a grandeza do tema através dos mais criativos meios. Sendo centrado nesse cosmo progressista da educação artística, o filme faz bom uso de imagens não-diegéticas como uma constante para exemplificar o que estamos ouvindo.
A primeira coisa que vemos na tela é a citação de vários autores sobre os únicos tipos de histórias: “uma pessoa parte em uma jornada e um estranho chega à cidade”. Sagaz a escolha de utilizar dessa inserção como prelúdio para o obra, pois Mondo Cacho se encaixa perfeitamente em ambas classes narrativas graças à ótima contextualização do cenário onde estão inseridos os personagens, dando vida e personalidade à cidade. No documentário, podemos seguir a perspectiva de “o estranho parte em uma jornada que é a cidade” graças as ricas descrições dos personagens sobre a cultura, lazer e choque com os originários do local e o uso de imagens dos filmes produzidos pela faculdade, dando vida própria para Cachoeira.
Dois estudantes de Cinema relatam suas experiência (sabiamente intercalados pela montagem) na cidade de Cachoeira, polo artístico do ensino superior federal do recôncavo baiano. Curioso ver como uma cidade do interior é o abrigo da contemporaneidade discente, contrariando o estereótipo de “garoto do interior que se descobre na capital”, pois o interior brasileiro é conhecido por não ser tão “mente aberta” como as cidades grandes; então eu vejo mérito do documentário em saber retratar a protagonista se descobrir e aceitar ser diferente neste cenário de insegurança através apenas de sua declaração sincera. É notável o conflito com grande parte da população conservadora que ainda não se acostumou com as novas questões de expressão social. Além de tudo, foi curioso eu, apesar de estar no outro lado do país em uma capital, ter me identificado com o que estava sendo transmitido no documentário; demonstrando que, por baixo de toda a finesse da sociedade cosmopolita, ainda preside estruturalmente o ódio e preconceito nas relações sociais. Sendo a entrevista o único formato, o curta utiliza os depoimentos para denunciar tais questões que permeiam esse país em todos as esferas regionais e como há a urgência em enfrentá-las, como a homofobia resultante em agressão, com a naturalidade de um diálogo; talvez por isso que o documentário utilize uma captação de áudio de baixa qualidade, para emular a sensação de conversa virtual, um áudio do “WhatsApp”, que está presente no conteúdo do que está sendo dito.
Eu senti bastante inspiração de A Entrevista (1966), de Helena Solberg, na forma narrativa. Ambos os documentários se tratam de relatos auditivos enquanto o visual serve como representação (neste, quase abstrata e extremamente sensorial) do que está sendo dito. O som direto é praticamente inexistente nos dois filmes, causando a sensação de deslocamento como ambos os temas são deslocados do contexto histórico e social em que estão interpostos; assim como na ditadura militar era impensável mulheres falarem tão abertamente sobre suas vontades em relação ao patriarcado imposto, é impensável para muitos moradores do século XXI de Cachoeira que mulheres fujam da feminilidade ou que duas pessoas do mesmo gênero demonstrem amor. Tal como a autora do Cinema Novo retrata com sensibilidade e ousadia a questão feminina, esse filme universitário trata com muito respeito o embate de gerações sem nunca parecer omisso. O viés do documentário compreende que todos temos direito de sermos quem somos e isso não está aberto a questionamento, também concorda com o fato de que há pessoas que discordam dessa noção básica; então um peso trágico é criado na obra quando ela retrata tais pessoas acreditando piamente que a subversão dos valores tradicionais está intrinsecamente ligada à morte e destruição.
Os dois personagens principais, em meio à tantas diferenças nas suas vivências, compartilham do amor à arte e a recusa de negar suas personalidades. A protagonista na qual temos o primeira contato entra no universo artístico de Cachoeira pois o amor de um estudante pelo curso e ambiente a contaminou, e presenciamos a mesma paixão vindo da protagonista em relação a esse mundo igualmente apaixonado por música, dança e artes em geral. O segundo protagonista, ciente de que ele pode passar despercebido por essa casta conservadora, narra os absurdos e micro agressões contra os “cosmopolitas” com um minúsculo ar de “comédia de situação”, enquanto a protagonista, que não segue a aparência social conservadora, adiciona um peso trágica ao relatar as ofensas e agressões físicas sofridas por não ser o pastiche que o meio reacionário deseja.
Sendo um filme plenamente universitário, Mondo Cacho transmite perfeitamente a tesão artística na contemporaneidade de quem está deslumbrado com a imensidade cultural, o que serve de identificação com uma grande porção dos estudantes artísticos brasileiros. Finalizando, é fantástico ver como o curta utiliza das mais variadas noções técnicas para transmitir a sensação de casualidade do cotidiano e, ao mesmo tempo, descolamento da realidade; como a imagem, que é literalmente fragmentos da cultura cachoeirense, servir uma dinâmica exemplificação do universo em que o áudio nos imerge a ponto de nós sentir uma, mesma minúscula, de que já estivemos em alguma sala de aula do Centro de Artes, Humanidade e Letras da UFRB.
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