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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

Foto do escritorHeloisa Montai

Quando a tentativa de revolução cai em reforma

Acredito que Dois no Asfalto foi meu primeiro contato com um curta-metragem musical. Ou melhor, a tentativa de um. Digo isso pois o filme não parece consciente de pertencer a esse gênero e sua execução acaba se perdendo em outras referências e deixando a música, que surge a princípio tão importante, de lado. Infelizmente, não é só nisso que o filme se perde.

Já me sinto distante do filme logo em seu início. A introdução aos personagens e às suas rotinas de manhã não me cativa com sua curta duração de planos e a interrupção constante de imagens que só possuem o intuito de reafirmar o espaço da narrativa - a cidade do Rio de Janeiro. Traço próprio das novelas cariocas, que utilizam da técnica para separar as histórias de nichos diferentes de personagens dentro da mesma narrativa. Outro problema que isso me traz é a sensação de que não há uma real introdução para o curta-metragem, como se ele fosse a continuação de algo. Assim, ele se torna um conflito avulso de uma história maior; o espectador assiste como quem pega pela metade um episódio qualquer de uma novela que não acompanha.

Ainda nos primeiros segundos de filme, a tensão que a música traz parece não condizer com a atmosfera do cotidiano dos dois amigos, o que reitera a banalidade das imagens da sequência. A letra de rap, própria de rodas de batalha, não recebe o pano de fundo que merece, mesmo sendo essa muito bem composta e interpretada em um ritmo capaz de encontrar mais rimas em sua locução do que em sua letra. Por sinal, a música só se torna mais poderosa quando acompanhada de um plano mais bem pensado: o personagem de olhos fechados parece querer gritar as rimas como um mantra contra a parede para que elas ecoem de volta sobre si em uma ação e reação. A emoção se torna mais palpável e é possível sentir a paixão do personagem pelo rap e pela sua religião. São eles que o motivam a enfrentar o dia.

O filme retorna à técnica de cortes rápidos do trânsito e dos personagens pedalando em filmagens que incluem point of view, como as de um documentário, o que me faz sentir de novo que ele não tem certeza de a qual gênero pertence. A música volta a acompanhar em off, retornando à problemática já exposta. Uma pequena parada evidencia um roteiro com diálogos desconexos e citações forçadas para reiterar a temática da trama. Uma reflexão sobre a tecnologia e os aplicativos de delivery é proposta, mas vai embora de forma tão aleatória quanto surge, só recebendo uma outra referência em uma fala mais a frente no filme. Nas imagens, essa relação com a tecnologia é quase implícita; os aparelhos sequer se aproximam do ponto de vista do espectador e só aparecem em planos curtíssimos.

A inspiração na teledramaturgia ressurge aqui ao que o filme se debruça apenas sobre a técnica dos atores, que ele sabe ser imensa, mas se recusa a explorar. Preferindo apenas se adequar visualmente a ela, ao invés do contrário. A direção de atores fica a cabo dos próprios, enquanto a estética apenas se preocupa em encontrar o ângulo mais próximo de seus rostos ou no qual o ator parecerá melhor gritando. Quanto aos movimentos, só ocorrem dois realmente expressivos: um quando o personagem é maltratado pelo dono do restaurante e tem sua frustração redundantemente afirmada pela aproximação da câmera de seu rosto enraivecido; outro, na briga entre os dois amigos em que o círculo que a câmera realiza em torno deles dita a inutilidade do debate.

A confiança na técnica cênica é tamanha que chega a impedir o próprio desenvolvimento dos personagens, que sempre se apresentam da mesma forma. O tom de voz escolhido para os diálogos é sempre o mesmo, no começo, meio e fim do filme: aquele que dará às falas mais realismo em relação ao que se espera de um personagem homem, vindo da favela carioca. Sempre eufóricas e recheadas ao máximo de gírias regionais para criar a sensação de identificação com a classe popular. Só há uma alteração para a explosão de raiva do protagonista no final, que chega a misturar um murmúrio choroso ao reclamar de sua fome. Mas mesmo essa cena não me convence por seu excesso de exagero do crível. Ao assistir, eu me impressionava com o realismo da indignação, mas não simpatizava muito com ela. Se a narrativa me soa natural, mas não me faz acreditar nela, ela pode até ser realista, mas é verossimilhante?

Também, de onde sai a citação da fome? Que outra informação durante o curta prevê essa fala? E a referência ao irmão e mãe do personagem principal, se eles são tão dependentes dele assim, como podem não aparecer sequer uma vez no filme? As citações de impacto apelam para que o espectador tenha empatia pelo personagem e sua causa, mas nem sequer o filme a possui, visto que não foi capaz de construí-la.

A obra se encerra com uma moral distorcida. Mesmo guiado por um desejo de mudança na narrativa, o personagem termina sozinho seu paradoxo e contentado, de forma amarga, com a ordem vigente. Após incitar a ideia de uma revolução, ele apresenta um pessimismo fruto da ideologia dominante e uma ideia de “homem contra homem” contraditória para um filme que trabalha com conflito de classe o tempo todo.

Em suma, o filme é isso: uma narrativa que se dá como certeira por só possuir uma temática importante e que se perde ainda mais na execução ao privilegiar maneirismos teledramatúrgicos. Lembro de uma vez ter lido um comentário que dizia “fazer arte sobre causas importantes não necessariamente torna sua arte importante”, e acho que ele cabe bem para esse filme. Dois no Asfalto tem uma causa, câmera e atuações boas, mas é estética, poética e moralmente fraco; clama por mudança e grita por revolução, mas se contenta em ser um mero reformista.

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