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DESVER

FESTIVAL DE CINEMA 

UNIVERSITÁRIO

DE MATO GROSSO DO SUL

Foto do escritorMarco Antônio Bonatelli

Quando Caem as Máscaras

Mais uma vez a Fundação Armando Álvares Penteado é uma recordista no Festival Desver no quesito seleção de filmes. Ano passado eu tive a oportunidade de escrever sobre Paloma (2021), pomba revolucionária de Alex Reis, e Caixinha de Música (2021), conto infanto-juvenil macabro de Ana Carolina do Monte, e, em ambas as animações, encontrei uma condução geral que poderia descrever como resoluta. Acima de tudo, essas foram obras que quebraram toda e qualquer posição defensiva que eu tinha quanto às suas premissas e me tocaram pela simplicidade de suas narrativas, no melhor sentido possível, embaladas por escolhas artísticas cativantes. E vejam só: esse ano eu não apenas sou o encarregado de escrever sobre Además de las Máscaras – outra obra da FAAP que se utiliza da técnica de animação – como também sou pego de surpresa uma vez mais. Uma não só positiva, como também com toda chance de ser a menina dos olhos de ouro do Desver 2022, repetindo o feito de Paloma do ano passado. O curta dos diretores Carolina Bonformagio da Silva, Leticia Lopez Rangueri e Lucas Brassanini Flores conta a história de dois rapazes que trabalham como atores de teatro. Eles se amam e contracenam todas as noites no mesmo palco, mas não assumem a relação por medo das consequências que podem sofrer se o fizerem. Nesse sentido, não há estardalhaço quanto a problemática de Además – a narrativa estabelece a base do conflito de forma rápida e sucinta e logo adentramos a história envoltos ao sentimento de querer descobrir o destino desses jovens –. Não há, também, uma motivação ou desenvolvimento para o preconceito (e quando há, fora a estupidez humana que tão bem descreve Mbembe?) e assim somos logo introduzidos, a partir de uma estrutura de contação de histórias essencialmente arquetípica, nesse mundo em que noite após noite os amantes vestem suas máscaras e representam estereótipos de palhaços para entreter o público.

Aqui já fica clara a decisão de tornar a dramaturgia, em seu caráter trágico e mimético, parte da metáfora que vai refletir a história do filme. “Ninguém nunca vai te querer”, diz um dos personagens para o outro em dado momento, seguindo o texto da peça. Contudo, ambos sabem – e muito bem – o peso dessas palavras, mesmo que ditas de forma encenada. A representação de papéis é, assim, estabelecida tanto dentro quanto fora do palco (num caso para o público e noutro para o meio social no qual estão inseridos, respectivamente), e o cansaço eventualmente toma os corpos e as almas dos intérpretes. Eles admitem que querem estar juntos, “mas não aqui”, e o espaço mor da expressão – o palco de teatro – se torna só mais um entre os muitos grilhões que os ‘mantêm na linha’. Até mesmo no íntimo dos bastidores vemos que, cada vez mais, ambos confundem a si mesmos com os personagens fictícios que interpretam, perdendo parte de sua genuinidade para se aproximarem dos palhaços que servem a um propósito bem definido e que não incomodam ninguém. A animação empregada aqui, dessa forma, acompanha o tratamento proposto pela narrativa ao rimar sujeito com papel encenado, partindo de uma abordagem bem direta e literal do traço. Utilizado para que os movimentos corporais dos arquétipos da peça surjam nos atores, por exemplo, esse traço gera representações de visualidade díspar (um faz o tipo triste e o outro o burlesco; um anda mais curvado e o outro com o nariz em pé). Na verdade, a técnica toda se mantém a serviço de nos integrar a esse mundo sem chamar muita atenção para si, com exceção de uma sequência que vou descrever mais adiante. E ela consegue, devo dizer, constituir um primor visual impressionante, não sendo exagero constatar que temos no curta uma das mais belas animações que já vi num filme universitário. O ambiente do teatro se apresenta com um ar suntuoso e vivaz, mas ainda assim dá pra sentir que há algo de deprimente e incômodo rondando por ali. Ao fim e ao cabo, toda essa integração da história com a técnica e com o próprio teatro, e a capacidade dos realizadores de manter o filme conciso e claro no que diz respeito ao seu discurso, traz um ar de inteligência e elegância muito pujantes para o projeto. Daria pra ir longe aqui, descrevendo mais e mais escolhas da direção que corroboram para isso – a caraterização do casal se utiliza de cores vivas para gerar outras distâncias entre eles (um é preto e branco e o outro é colorido), etc. –, mas não vou adentrar esse território. Recomendo que vejam o filme.

Contudo, na virada do segundo para o terceiro ato, ainda na união entre técnica e história contada, surge um dos momentos mais tocantes de todo Desver 2022 e que me sinto na obrigação de criticar. Os dois atores principais são flagrados por outros colegas de palco no urdimento trocando carícias. Um deles resolve, então, numa tentativa desesperada de não ser descoberto, fingir que estava encenando um personagem de improviso. Todo princípio de mimese já se perdeu aqui e, para imprimir essa ideia no regime da visualidade, a direção se utiliza de forma muito sagaz do caráter expressivo que o traço possui: em sua vã tentativa de despistar os olhares maliciosos dos outros intérpretes, o ator fica sob um holofote que traz em sua luz a persona de um homem arrogante e até preconceituoso, ainda no mesmo estilo de animação do restante do curta. Mas onde o spot acaba, descobrimos um menino completamente dilacerado por dentro por não poder ser ele mesmo, numa abordagem pictórica quase elementar. Tomado pela linha dura e grosseira de um contorno branco que flerta com desforme e que acompanha cada expressão na qual o personagem se lança, o fundo negro que escapa ao V do holofote, completamente sem vida, soa como um buraco do qual alguém grita enlouquecidamente para sair. E aí sim entramos no território em que nenhuma outra arte se aventura: a dança criada pela mudança do traço, que surge dos movimentos do ator fingindo interpretar o papel, reinventa o visual da figura a cada frame, resultando em uma imagem muito tocante. Exposta a partir da essência da própria animação que se volta para a estética primordial do traço que a compõe, vemos a alma desse jovem à nossa frente. E não é justamente esse traço, em si, também a representação da exterioridade de nós mesmos sobre a qual o filme fala? O inter e extrapessoal do protagonista se unem num mesmo tempo e espaço fílmico para formarem a abstração-síntese que o curta propõe. É de quebrar o coração tamanha ruptura emocional, e o traço se torna o cerne do discurso proferido.

Voltando à história do curta, surge na última sequência a coragem desse mesmo personagem – levado a ofender seu amado para manter as aparências – para fazê-lo se recusar a sair do palco como deveria e reescrever a peça retirando sua máscara. Ele toma o companheiro nos braços e ambos se beijam à plena luz do espetáculo. As cortinas se fecham e o público aplaude de forma contida, inicialmente, talvez até chocado, mas isso não importa. Essa história nunca foi sobre outros que não esses dois rapazes. Jovens que deixaram de ser Pierrot e Arlequim no toque de seus lábios para poder, enfim, se chamar verdadeiramente de Lester e Tetra. E, então, ouvimos a ovação do público crescer junto à belíssima trilha original de Bibi Cavalcante. Sobem os créditos. Pode-se argumentar que os realizadores perderam a mão aqui e resolveram aplaudir o próprio filme (que não é ele mesmo um espetáculo?), mas não penso que seja o caso. Para mim, esse último plano é muito mais a celebração do amor desses dois que pôde, enfim, se concretizar do que qualquer outra coisa. É a recusa da farsa e da tragédia, novamente no campo metafórico, e a crença no poder da própria história como motor de transformação. Además de las Máscaras é uma animação de altíssimo nível embalada por uma narrativa de aceitação muito bem contada, mas – até mais do que isso – também é uma obra que nunca precisa trajar quaisquer disfarces para nos manipular ao longo de sua condução. É Cinema e da melhor qualidade.

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