No fim das contas, a pandemia da COVID – 19 realmente mudou a forma como a nossa geração pensa e faz algumas coisas. Nesse sentido, seria impossível achar que a classe artística iria escapar das influências negativas desse mal contemporâneo.
Bloqueio criativo, ansiedade, obstáculos que surgem pelo isolamento; as complicações da vida pandêmica são males que todos compartilhamos – bom, no mínimo posso falar por mim mesmo que, ao longo destes últimos dois anos, fui embalado por um tsunami de sentimentos diversos. Sentimentos que têm origem nos noticiários sofríveis, nas impossibilidades do momento, nas limitações da pandemia e nas tristezas que surgem do tempo presente.
Sinceramente, não acredito que isso foi algo exclusivo meu. E, para mim, isso se refletiu em uma quantidade diversa de obras audiovisuais que foram produzidas durante os últimos tempos. Tanto para os cineastas que tentaram desviar das complicações para alcançar seus objetivos, quanto para os realizadores que investigaram as possibilidades temáticas da própria pandemia.
Tropeço, de Julia Kuner e Thales Lucena, se encaixa nos dois. É um filme sobre a pandemia em forma e conteúdo. Poderia dizer que se trata de um documentário, mas não tentarei encaixá-lo em definições fechadas. Aqui tudo pode ter sido criado como uma ficção, assim como as situações pelas quais o filme se estrutura têm um pressuposto no mundo real.
Tropeço começa sem imagens na tela: ouvimos apenas o som da voz de Thales – em algo que parece ser uma mensagem de áudio –, e ele fala sobre fazer um filme que não seja individualista, sobre querer não apresentar uma narrativa que seja exclusivamente sobre ele.
Aos poucos, algumas imagens vão surgindo em tela: um lago, árvores, uma luz refletida no azulejo do banheiro e algo que parece ser um apartamento em construção. Enquanto isso, uma outra voz entra – Julia responde a fala de Thales –, e nós entendemos que se trata de uma conversa. Ela opina sobre o filme, sobre as ideias e problemáticas expostas pelo colega. Ainda assim, uma frase me marcou muito: Acho que é isso... aí o roteiro a gente vê como que fica lá... a gente desenrola, vai filmando.
Existe um exercício metalinguístico claro que surge logo de cara em Tropeço: o de revelar a feitura do filme – não só assumindo a participação dos realizadores como personagens, como também mostrando ao espectador os processos pelos quais o filme está acontecendo. É sobre fazer filmes, mais especificamente; sobre fazer filmes na pandemia. E, particularmente, eu acho que estes dois minutos iniciais se revelam como uma ótima premissa. O filme vai surgindo em tela como um making of, como se fosse o próprio processo de fazê-lo.
Os conflitos são expostos para nós assistirmos e isso se torna parte da trama que vamos acompanhar. O interessante de Tropeço,em um primeiro momento, é o desafio de se fazer um filme impossível, é acompanhar universitários lidando com as dificuldades do tempo para poder realizar algo; fazer arte. Me despertou curiosidade o fim disso tudo; qual filme eu vou ver? Qual é a sua forma? Como ele vai lidar com os obstáculos existentes? E o resultado desta investigação vai ser interessante? Foram questões que surgiram ao longo da sessão, contudo, no fim as respostas que tive foram desanimadoras.
E, sinceramente, a desconfiança de um final preguiçoso surge logo no começo da rodagem. Uma ruptura acontece pouco tempo depois da obra ter me ganhado. A fala “então a sugestão que eu tenho, de repente, a gente fazer um vídeo... de ideia frustrada” entra e, logo em seguida, não estamos mais vendo um filme que lida com a metalinguagem de se realizar cinema na pandemia, mas sim com a falha assumida desses realizadores estarem sendo impossibilitados de fazê-lo.
A obra se torna o cotidiano deles; as imagens vão ficando mais íntimas, e o filme não se estende rumo a algo que mantenha o interesse real. Existe a reclamação constante; a afirmação do óbvio por meio do som e do visual. E o problema não é o filme de cotidiano, o filme da repetição, é a quebra que os próprios realizadores fazem com a proposta inicial. Este conflito é poético em certa medida – um filme sobre ter falhado, sobre estar preso pelos obstáculos – mas para mim é um desvio vão.
A questão é que, a meu ver, Tropeço não surge como um filme impossibilitado, mas sim como uma possibilidade não aproveitada. Ele não me parece lidar com os problemas da pandemia – só está cheio deles. Deixar o roteiro para depois, para o momento que for filmar, não é só revelar que o roteiro precisa ser escrito, é assumir que o filme está incompleto, que a ideia não está formada.
Se o conceito não existe, tudo que se desenrola não tem fundamento. Não chega a ser um filme sobre um não-filme, porque aparentemente nunca o foi. Mesmo que nos esforcemos, não vemos aquilo que poderia ser o contraponto, que seria a ideia antes de ser frustrada, o filme que deveria ser.
No fim, a obra não é o que diz ser, não é um filme frustrado – é uma frustração. Thales e Julia tropeçaram em uma ideia que me parece genial, mas caíram no banal – não no tema do corriqueiro, mas na sua abordagem usual. Como eu disse, a metalinguagem nesse sentido pode soar profunda para alguns, mas, a mim, só é vazia.
A frustração faz parte, e vem justamente com o mergulho na banalidade. Como criar arte com a cabeça frita? A narrativa em nenhum momento é ficção, nem os áudios ensaiados. Tudo é real. As vezes os resultados que temos não são complexos, profundos e poéticos como queremos. E tudo bem :)