Talvez fosse de bom tom ter um pouco de autoconsciência antes de julgar diretores e diretoras de cinema que não jogam conforme as supostas regras da maioria. O cinema brasileiro nunca precisou de dinheiro para ser grandioso, todos sabem, e ainda assim nos últimos três anos eu vi uma infestação de obras blasé em festivais como Metrô, Visões Periféricas e o próprio Desver: curtas, médias e longas-metragens que acertam de frente à quinhentos quilômetros por hora o senso comum na fabricação de um mesmo tipo fílmico. Isso mesmo, fabricação safada de narrativas pseudointelectuais sobre três ou quatro assuntos tratados com pouca ou nenhuma inovação poética ou estética – e isso, dinheiro nenhum no mundo compra (temos o filme melancólico de pandemia, o filme que constata que o governo Bolsonaro é horroroso, o filme experimental de colagem que toma como base a internet e o bacanal que resulta da mistureba dos demais) –. Então, por que não fazemos diferente? Por que não acompanhamos nossas próprias premissas nas narrativas que contamos e reconstituímos nossos ideais com aquilo que sempre nos foi tão caro: produzir obras incríveis, tendo muito menos condições que os demais, que refletem sim um pensamento social, mas que têm na genuinidade e na potência de suas imagens sua maior força? O cinema brasileiro universitário (assim como seu irmão mais velho, o cinema brasileiro não-universitário) é precário em recursos, é verdade, mas nunca precisou ser pouco imaginativo.
Eis, então, que me surge um filme stop motion sobre um cachorro de camisa social chamado Valdir, sedento pelo sangue do veterinário que castrou sua amada, aparentemente uma cadela que cometeu suicídio em decorrência do acontecimento, invadindo o consultório do médico tirano no meio da noite e tendo que lidar com os seguranças ¾ que protegem o local. A premissa absurdista de Noite do Cão (ótimo trocadilho, a propósito) não só faz jus ao filme, que remete em suas melhores tiradas às obras de Nick Park, como também traz um deleite risível em seus poucos minutos de duração. Já começa com o canídeo-bípede protagonista ao som de uma música triste lendo a suposta carta de suicídio assinada “com AUmor” pela remetente, e vai sem medo de ser feliz para a invasão ao consultório do veterinário à lá Solid Snake (tem corda de piano e tudo). Em cada um desses momentos, o diretor Pedro Bugarin Rimoli sabe muito bem quando animar seus bonecos e quando deixá-los estáticos, buscando o cômico como resultado das sequências. Temos, assim, um show de personagens carismáticos em seu próprio remendo e modelagem. Não precisa de mais de alguns segundos para entendermos quem é quem dentro de seus arquétipos e, com isso, por mais que tudo seja meio mal esquematizado (animação truncada, modelos desproporcionais), a consciência dos realizadores se mantém sempre no lugar certo para impedir que o projeto pareça um filme qualquer coisa feito sem muito cuidado. Ao descobrimos que estamos frente-a-frente com uma grande piada, rimos porque é tudo tão besta que nos pega desprevenidos até para os padrões do nonsense. Não vou avançar no território de adiantar as gags do filme por motivos óbvios, mas é bem bom, acreditem.
A própria existência do curta acaba se tornando um elogio ao cinema imperfeito, cafajeste e do mal gosto; ao cinema que tantas vezes se viu escanteado por obras ditas como mais importantes por aqueles mesmos fabricantes de tipos fílmicos safados que citei aí em cima. Um cinema que resiste e, para mim, ressurge de tempos em tempos como o melhor de nosso país. É o resgate de uma tradição que teve na Boca do Lixo o seu auge e que, por mais que tantas vezes seja posicionada como menor em nossa história, venceu o tempo como pôde e fez escola, despontando agora na figura de jovens cineastas que olham para outros estilos, como o kitsch, com o objetivo de continuarem esse discurso em prol da avacalhação. Não que tenhamos um aceno a Coolidge ou Sganzerla aqui – como eu disse, as veias de Wallace & Gromit e Shaun, o Carneiro são bem visíveis à olho nu, tanto no estilo quanto na técnica empregados –, mas ainda assim gosto de pensar nessas produções como o esforço conjunto de levar o cinema aos patamares indignos da arte legítima, e por isso tantas vezes recusada: porque transgride; porque não tem pautas. Já passou da hora de invocarmos Dormachi pra constatar que esses “moralistas do diabo” preferem mais o discurso programado do sem-sal à uma piada de mal gosto bem-feita; ao expurgo do nexo e do bom senso. Estão, mais uma vez, prontos para defenderem o que for pertinente sem pensar muito e ter convicção na experiência com o sensível. Sem olhar, ao fim e ao cabo, para a obra de arte como o princípio transformador per se, que recusa as cartilhas pré-decodificadas de leitura. Uma pena.
É claro que travellings vão continuar sendo questão de moral e a democratização dos meios de produção ocorrida nos anos passados é de extrema importância para o cenário nacional, mas levar tudo tão a sério não é perder um pouco a graça da vida? Sendo sincero, me alegra saber que piadas como as de Noite do Cão continuam sendo contadas – é corajoso investir tempo e recursos numa premissa dessas sabendo da recepção que pode a obra pode ter –. Por mais filmes assim nós devemos dar um aceno positivo. Pelo menos se quisermos acreditar num futuro melhor que o das últimas três décadas para o audiovisual de nosso país; para que artistas como Rimoli continuem seu caminho rumo ao irmão mais velho Cinema Brasileiro Não-Universitário. E assim poderemos ter outros filmes como o genioso Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente (2021), de Cesar Cabral: uma das melhores produções do Brasil nos últimos anos.
De volta à Noite propriamente, também merecem destaque os departamentos técnicos que contribuem para o esmero visto na construção do mundo apresentado. Sem gritar à plenos pulmões, a direção de arte, por exemplo, aparece de maneira chamativa em gags visuais pelo cenário e se mantém compondo espaços caso não acionada de maneira mais direta pela direção. É tudo muito povoado por objetos cênicos que ajudam a criar uma certa harmonia para as composições de Rimoli sem nunca poluir o quadro. Obviamente, a fotografia também tem sua parcela de crédito nesse aspecto. Fazendo uso de princípios da construção da imagem – como o equilíbrio – para potencializar o visual de forma com que até os remendos pareçam feitos conscientemente (e não duvido nada que tenham sido), ela é empregada para fins práticos de concisão no curta. Basta olhar para como os objetos espalhados ditam, em grande medida, a grandeza e o ângulo dos planos adotados (os quadros nas paredes são constantemente utilizados como medida para isso). Ambos os departamentos conversam bem e como resultado surgem em tela alguns dos momentos mais imaginativos de Noite do Cão. Mas a verdade é que tratar o filme a partir de qualquer uma dessas leituras mais intelectualizadas e técnicas não faz jus ao ideal que Rimoli imprime na obra. Ele certamente não tem pretensões de vencer o Oscar 2023 de curta-metragem, e quando faz o que faz é por uma finalidade bastante objetiva, na verdade. Talvez recomendar essa ótima comédia besteirol pra quem curte o estilo seja suficiente. Comédia essa que toma como base algumas inspirações bem interessantes e se esforça para entreter e unir a plateia, se exibida nos espaços certos e recheados de pessoas sensatas, através do riso e do forte sentimento de ‘que merda é essa?’. Vá ver Noite do Cão, eu recomendo.
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