Por volta de três minutos, Em direção à Ítaca alia animação à poesia e discursa sobre a vida através de imagens e sons aconchegantes que me prendem. Eu escrevo este texto me assumindo, antes, como alguém com pouquíssimas referências de cinema experimental, categoria em que a obra se enquadra. Assistir a filmes com imagens que não se relacionam numa perspectiva causal é sempre um desafio para a minha cabeça inundada pelo arquetípico. Mas com Ítaca a experiência não foi extenuante.
Pelo contrário, embarquei na viagem. E o fiz por causa de como, logo nos primeiros segundos, o filme anuncia sua tônica e constrói o sentimento que me guiará dali para frente. O mar que se move, singelo, é tomado por uma forte luz. Esta é acompanhada dos votos de uma viagem repleta de aventuras e conhecimento, os quais compartilham a banda sonora com o barulho das ondas. Não entendo, ainda nesse momento, que assistirei a algo filosófico, mas permito-me dedicar à fruição daquelas imagens. O movimento do oceano deriva de fusões entre cada belo fotograma desenhado e torna-se, assim, fantasmagórico. Isso me hipnotiza e me prende. Me sinto acolhido e sigo assim durante toda a rodagem.
O carro que toma a tela e surge a trilhar uma estrada dá espaço logo em seguida para o mergulho de uma menina. Esse gesto se transfere da água para um campo etéreo recheado de estrelas. Eu, já embebido pelas imagens, mergulho também. E minha fruição, ora referente ao prazer pelas imagens, se transforma em algo maior a partir desse momento. As luzes e sons me provocam algo mais complexo que uma reação física àquilo que alcança meus olhos e ouvidos. Começo a contemplar. Percebo que há algo de essencial em tudo o que vejo em tela. Afinal, o que há em comum entre viajar de carro, mergulhar na água, brincar no balanço e admirar uma paisagem? Em direção à Ítaca responde que é o movimento. Todas essas imagens estão no filme, em forma de rotoscopia, e é evidente que se referem a ações profundamente diferentes. Mas não é sobre um movimento físico. É óbvio que um carro anda de forma diferente de uma pessoa que nada, a qual faz o mesmo em relação a quem se balança. Quem admira a paisagem, por último, nem se move. Mas a técnica de animação derrete tudo que é sólido, e o filme se utiliza das imagens para falar sobre o sentido das nossas jornadas neste mundo. O que todas essas atividades têm em comum é que nos fazem aprender – seja sobre o nosso corpo, seja sobre a relação dele com o espaço que o circunda –, e é esse aprendizado que nos leva em direção a uma vida que vale a pena; que engrandece a viagem à Ítaca; que faz com que nossos barcos só ancorem na ilha quando estivermos enriquecidos com o que conhecemos no caminho, como a narração diz em determinada altura. Daí o movimento.
E eu poderia terminar meu texto por aqui. Acredito já ter mostrado que vale a pena assistir ao filme da Marina e do Mateus, sobretudo pela primorosa articulação do pensamento deles através da linguagem. Fazer isso seria, no entanto, uma injustiça comigo. O que mais me impactou não foi propriamente o discurso, mas o espelhamento dele com o que senti. E isso aconteceu por um motivo. Ao mesmo tempo em que o filme considera a vida uma viagem e mostra um apanhado de momentos importantes dela ao longo de sua extensão, torna-se também um filme de viagem por nos permitir percorrê-los. Para além disso, quando faz de seu cerne a valorização da experiência ao longo da estrada do viver neste mundo, concebe ainda imagens belas e acolhedoras, o que me remete a um zelo pela experiência de assisti-lo – faz-me apreciar a caminhada pela rodagem –. Eu aproveito o filme do mesmo jeito que ele discursa sobre o dever de se aproveitar a vida, aprecio suas imagens e penso sobre elas. Contemplo-as, afinal.
Essa ficou muito boa. Que orgulho de você!